Crônica antiga (de 2003) republicada para comemorar a entrada em vigor da nova lei sobre o atendimento a clientes, a tal “lei do call center”
Habita as profundezas mais inóspitas e sulfurosas da minha pessoa uma criatura nauseabunda que de tempos em tempos aflora e espalha, através do telefone, toda a sua ira. O pessoal lá de casa apelidou tal elemento, apropriadamente, de “monstro do 0800”.O portentoso furibundo aparece justamente quando, do outro lado da linha, está algum ou alguma dedicado ou dedicada funcionário ou funcionária (ah, essa bobagem de ser politicamente correto com os gêneros arromba com qualque texto) de algum “call-center”, genericamente conhecidos por 0800, porque os números de telefone com que são acessados iniciam assim: zero-oitocentos.
“Call-center”, como todos sabem, é uma expressão com que modernamente denominamos a ante-sala dos infernos. O fogão moderníssimo, novíssimo, caríssimo não funciona direito. A quem devemos nos queixar? O ADSL moderníssimo, novíssimo, com pagamento super-em-dia parou de funcionar. A quem poderemos recorrer? A compra feita na megastore moderníssima, novíssima, agilíssima para descontar do cartão de crédito já completa um mês sem chegar. O que nos resta fazer? Sim, para todas essas questões a resposta é uma só: “ligar para o 0800”.
Um pouco de história: quando a gente ligava para a mãe ou para a avó dos “call-center” e ficava insatisfeito com o que a atendente nos dizia, sempre tinhamos a possibilidade da ligação ser transferida para o supervisor ou a supervisora. Aí, em muitos casos, a gente falava com alguém que era empregado da empresa, que tinha sido treinado ou treinada para respeitar o cliente, coisas assim. E sem grande esforço e desgaste acabavamos sabendo se a coisa tinha ou não tinha solução.
Agora, é outro mundo. O “call-center” fica, apropriadamente, longe das empresas. Li que os maiores, que atendem empresas do Rio, São Paulo e Curitiba, ficam em Goiânia e Uberlândia. Provavelmente as maiores empresas de Minas e Goiás têm seus “call-centers” em Porto Alegre e Recife. A distância impede que os diretores e funcionários ouçam a gritaria dos clientes.
E, modernidade das modernidades, experimentem pedir para um atendente chamar seu supervisor. Ahá! Não tem! “O senhor pode falar comigo mesmo”, eles dizem, certamente lendo o script na tela do computador. É neste momento, às vezes antes, que emerge, coberto da lama ancestral e putrefata do ódio com data vencida que todos guardamos no porão, o monstro do 0800.
Quem assiste a uma só performance do monstro já fica impressionado para sempre. Quem já viu e ouviu conta que sua principal característica é a voz tonitroante, vigorosa, num volume suficientemente alto para fazer tremer as vidraças, mas ainda abaixo do ponto de estilhaçar os cristais. No caso do meu monstro, parece que não usa palavrões no sentido clássico: mas usa palavras complicadas, grandes, pouco usadas, ditas com uma entonação cortante que não deixa dúvidas ao interlocutor: tem mãe no meio.
Apesar da presença apoteótica e memorável, o monstro do 0800 contabiliza mais fracassos que sucessos. Os “call-centers” são, de fato, muralhas blindadas que não permitem acesso ao âmago das questões e das empresas. Os estrategistas dos “call-centers” sacrificam milhares de pobres atendentes por dia, para preservar as empresas do contato com seus clientes. Não é possível que a pobre moça, depois de 15 minutos em contato auditivo com o monstro do 0800, consiga sobreviver. Porque o monstro não consegue resolver os problemas que o incomodam, mas certamente consegue esmigalhar o cérebro, o amor-próprio e a paciência da criatura que, por azar, o atendeu.
O monstro surgiu pela primeira vez num dia em que, depois de encher o saco de ligar para a Bosch (aquela do fogão que não funciona direito), resolvi ligar para o Procon. E foi mil vezes pior. Demora para atender, dificuldade para fazer-se entender, lentidão e ineficácia no serviço que combate demora, dificuldade, lentidão e ineficácia dos outros. Tive, naquele momento, um estremecimento e pequena amostra do que viria a ser, em outras ocasiões, o senhor da ira telefônica, o mestre do destempero verbal, o monstro do 0800.
Acredito firmemente que existe um único “call center”, que atende telefonemas dirigidos a todas as empresas do mundo, embora eles queiram fazer-nos acreditar que são vários. De qualquer forma, eles admitem que atendem várias empresas. Tanto faz ligar para o 0800 da Varig, da American Express, da Philco, da pomada Minâncora, o telefone toca sempre na mesma sala. Na tela do computador de quem atende aparece a personalidade que deve ser assumida e o texto a ser dito. Do lado de cá, a gente imagina que está falando com alguém da empresa. Do lado de lá eles devem ter um bolão interno para premiar quem despacha o otário em menor tempo. Ou quem consegue fazer a criatura ligar para mais telefones antes de voltar a este aqui.
O monstro, apesar do fedor, não deixa de ser divertido. Eu nem consigo lembrar direito, porque ele é espaçoso e sou obrigado a sair e dar uma volta enquanto ele arrasa com a menina (ou o menino) do “call center”. Só sei que depois que ele desliga o telefone e eu retorno, ainda ouço o pessoal rindo na sala. E sempre aparece algum engraçadinho ou engraçadinha para perguntar: “e aí, desta vez conseguistes resolver alguma coisa?”
[Ilustrações de Cayusa/Flickr e Marvel Comics/Hulk]
Um comentário:
Já tentou pegar um caderno, encabeçar ali um abaixo-assinando contra a loja, pedindo assinaturas pra expulsar a dita-cuja ou serviço da cidade?
Quinze ou vinte minutos,postado ali na frente,parando as pessoas e pedindo assinatura e vão resolver até a queda de cabelos...
Falta bafão,falta escândalo,fala virade de mesa; enqto continuar a nossa falsa fidalguia de resolver conversando, pode ir cozinhando no fogão à lenha ou no fogareiro Jacaré,aquele da querosena, num tem?
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lia
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