domingo, 9 de março de 2008

Entrevistão (trecho)

Como prometi pro pessoal que não conseguiu comprar o Diarinho, aí está um pedaço do entrevistão com a procuradora da República Analúcia Hartmann (foto acima). Assim que der, coloco outros pedaços. Leiam com calma, tem muita coisa interessante.

DIARINHO – Como conciliar o desenvolvimento com o meio ambiente?
Analúcia – Com bom senso, pensando no interesse público primeiro. Na verdade os setores ficam puxando esse cobertor curto, este quer construir, aquele quer ganhar dinheiro não sei como, o outro quer minerar e no fim não dá, acho que tem que ter bom senso e um poder público atuante. Tem que ter políticas próprias. O problema também é que não existe isso, porque não se sabe o que é a política pública ambiental em Santa Catarina. Eu não sei.

O Ministério do Meio Ambiente é um dos poucos que tem uma política própria. Bem ou mal, se a gente tem ou não restrições, é uma política de criação de unidades de conservação. Ponto.

Eu já acho que eles deviam trabalhar muito mais na fiscalização. Mas pelo menos eles têm um norte: é isso que nós queremos fazer. Agora aqui em Santa Catarina não tem. Então aí fica muito difícil. Aí ficam os órgãos ambientais e também os órgãos do legislativo cada um trabalhando pro setor que apóia este ou aquele vereador ou deputado, fica muito complicado. Enquanto não se colocar o interesse público na frente dos dos demais dizendo não, isto aqui é interesse público, não vai acontecer.

O problema que a gente encontra também é de falta de conhecimento. Uma dificuldade enorme de certos setores se convencerem que as coisas são reais, que são importantes. Eu estou cansada de falar de meio ambiente para pessoas que me olham como se eu fosse uma extra-terrestre. Outro dia vieram aqui dizer que a praia da Daniela está desaparecendo. Bom, a praia da Daniela até tem algumas circunstâncias naturais, que não tem nada a ver com a mão humana, que talvez façam com que ela desapareça. Agora, outras praias, como Ingleses, como Armação, a gente está dizendo isso há 20 anos. Ela vai desaparecer. Eu tenho até perdido um pouco a paciência. Porque a gente faz as audiências e diz isso. Olha, aquilo lá tá acontecendo em cima de uma restinga, que é o que sobra de restinga nos Ingleses, no canto norte da praia. Se esta restinga desaparecer, a praia neste canto vai desaparecer igualzinho no centro, igualzinho no sul.

Porque é da restinga pra praia que se deposita a areia que mantém ou retém o avançar das ondas. Não é o contrário. Não são as ondas que trazem a areia. As ondas levam. Cada vez que elas vêm, elas levam material. O material vem da terra.

Então, se fazem um paredão de prédios e retiram as dunas, a praia desaparece. E com o aquecimento global, desaparece ainda mais rápido, à medida em que as águas aumentam.

O Brasil é um dos poucos países do mundo, com uma costa deste tamanho, que não previu os cenários possíveis com o aumento dos oceanos. Você entra no sites governamentais dos Estados Unidos, da Holanda, da França, etc, já encontra os cenários com o que pode acontecer em cada local. O prognóstico é que em tantos anos aumente tantos centímetros, que vai fazer desaparecer esta ou aquela praia. Tem os cenários. Na Holanda já estão desenvolvendo os novos diques, para conter esse aumento.

No Brasil só agora, no ano passado, com o relatório da ONU, é que o governo federal resolveu investir e levantar cenários e tentar desenvolver soluções.

Este é o problema, as pessoas não acreditam. Numa audiência fiquei tão irritada que comecei a dizer para um empresário: vocês vão desaparecer com aquilo. O cliente de vocês não vai ter praia. Aquela praia está contaminada. O canto norte é o que sobra de restinga, de praia e de água limpa. Vocês são loucos, estão matando a galinha dos ovos de ouro, com essa ganância.

Já discuti com madeireiros e é uma dificuldade enorme, eles olham pra gente e dizem “imagina, tem muita madeira no país”.

Já trabalhei no oeste, a gente vê o desaparecimento da água no oeste [de Santa Catarina]. Aí quando as pessoas dizem, cada vez piora a seca no oeste, não é a seca, não é nem o clima. É que eles estão esgotando a água há décadas. Eles cortam na beira dos rios. Aí depois eles vêm pedir que o poder público dê água pra eles, quando o rio desaparece.

Se a gente disser: se vocês não deixarem 30 metros de vegetação de cada lado do rio o rio vai desaparecer, eles olham pra gente como se a gente fosse maluco. Mas vai desaparecer.

Veja o caso do Balneário Camboriú, que sempre me assustou. Balneário Camboriú é assustador, embora tenha gente que adore. Acho que a maioria adora. Mas é assustador, porque tu não imagina como aquela concentração de pessoas pode utilizar de maneira harmônica os recursos naturais. Não é possível. É demais. Os órgãos ambientais não deviam trabalhar isoladamente em licenciamento. Deveriam trabalhar com suportabilidade ambiental. Qual é a suportabilidade daquele local, para que ele mantenha um nível mínimo de qualidade ambiental? Qual é o máximo de população que poderia utilizar esses recursos de maneira a não esgotá-los e deixar para as futuras gerações? E essa é a dificuldade.

E se eu falo isso aqui em Florianópolis, já tem lá o presidente do Sinduscon que gosta muito de dizer “querem engessar o município”. Não é essa a idéia. A idéia é saber quais são os limites, para que todo mundo possa continuar usufruindo de Florianópolis, com essa beleza toda que Florianópolis tem. E para que todo mundo continue tendo água na torneira, possa fazer tratamento de esgoto. Porque a capacidade de fazer tratamento de esgoto não é ilimitada. Tem limite, como tem limite para fazer aterro sanitário. Não dá pra crescer, crescer, crescer, indefinidamente.

E eles acham que não, o que também é um discurso terceiro-mundista.
DIARINHO – Falta educação ambiental?
Analúcia – Acho que falta muita educação ambiental nas escolas. Tenho até uma certa dificuldade em trabalhar essa expressão, porque a educação ambiental acabou virando uma coisa muito comum, do tipo “vamos plantar uma arvorezinha” e não é uma coisa prática, do dia-a-dia. Uma vez escutei uma entrevista de uma ministra do meio-ambiente da França, que achei perfeita. Perguntaram “você acha que o francês médio está sensível à questão ambiental?” Ah, está muito, ele sabe que o vizinho não pode jogar lixo, ele sabe que o vizinho... agora, eles mesmos não sabem. Isso é real. A gente vê pessoas dizerem, aqui, que estão muito preocupadas com a Amazônia e aqui, ao lado, estamos acabando com a Mata Atlântica. Já se criou uma vez uma comissão, aqui, de apoio aos Ianomami. E eu disse, maravilha, mas por que vocês não apóiam os Guarani, que estão aqui do lado? Então vamos enxergar as coisas como elas são. Vamos prestar atenção nas coisas que estão acontecendo. Aquela coisa do agir localmente e pensar globalmente, tem que ser assim. Aqui é mais do que o momento. Além dessa degradação social toda pela qual Florianópolis está passando e que tem uma relação clara com a degradação ambiental. A degradação social é a pior das degradações ambientais.
DIARINHO – Há quem diga que o MPF não se preocupa com a favela do Siri em cima das dunas só fica pegando no pé do golfe dos riquinhos (no Costão do santinho).
Analúcia – A questão da ocupação do golfe é uma situação clara, que nos foi indicada tecnicamente, que é o tipo de uso de solo que se faz no golfe. Além da grande utilização de água e desse problema de agrotóxico. Isso é real. Se ele quisesse fazer um condomínio fechado ou um loteamento... (ele está fazendo um loteamento fechado, que nem existe na legislação, e um campo de golfe), não teria problema se não fosse ali. Mas ali é uma zona de recarga do aqüífero, que é o único que abastece o norte da Ilha. Então é uma situação concreta. Tenho certeza que se eles conseguirem ganhar a ação, se não acontecer nada, se eles implantarem e daqui a uns dez anos a água toda lá estiver contaminada, a culpa não vai ser deles. Evidentemente eles vão dizer que a culpa é do Ministério Público, da Justiça Federal ou de todos os outros moradores. Eu sei porque eu já fui em discussão lá em Ingleses em que representantes do “trade” turístico disseram que “a senhora está botando a culpa no trade turístico, a culpa é dos moradores”. Como a gente sabe perfeitamente que a situação de poluição na praia dos Ingleses é culpa daqueles prédios que foram construídos nos últimos 20 anos. Aquela grande quantidade de esgoto é em razão daquele monte de instalação, alguns até com fossa-sumidouro, na beira da praia. Não funciona. Não tem estação de tratamento de esgoto, não tem emissário submarino, não tem infra-estrutura praquilo e ainda destruíram a restinga.

Também tem o outro lado. A gente cansa de escutar, da população de baixa renda, “a senhora não entra contra o grande empresário”. Eu digo não, peraí. Vai pros dois lados. E até foi engraçado que isso foi alegado na própria ação do Costão Golfe, quando eles sabiam perfeitamente que na mesma época eu entrei com uma ação contra aquela ocupação de baixa renda em cima daquelas dunas entre Santinho e Ingleses. E que tem uma ocupação deles, também. Tem o que eles chamam de marina, que é uma ocupação clandestina, absolutamente clandestina, ao lado de ranchos de pesca e ocupações clandestinas de baixa renda. E eles sabiam perfeitamente. Isto faz parte do esforço para criar um mito.

Sobre a questão do Siri, especificamente, existe um dossiê sobre a vila do Siri aqui no Ministério Público Federal, em tramitação há muitos anos, mas que não está comigo. Eu não posso entrar com ação porque não foi distribuído pra mim, está com outro procurador. Sei que o Ministério Público Estadual tem uma atuação também a respeito disso, como tem a respeito de várias ocupações de baixa renda lá. É evidente que estas são situações que têm que ser trabalhadas de maneira diferente, mas têm que ser trabalhadas.

Eu tenho uma ação, aqui, por exemplo, da via expressa Sul, que estou há anos tentando sensibilizar governo do estado e município, para retirar aquela população de baixa renda que está na foz do manguezal da Costeira do Pirajubaé. Não consigo resolver e é uma coisa mínima, são apenas 40 famílias. Tenho uma ação na Tapera, tudo ocupação de baixa renda, em cima do manguezal. Quer dizer, ações em cima de ocupações de baixa renda existem muitas. Não dão muita manchete de jornal, também. Não tem muito interesse dos jornais, também.

Tenho colocado pros governantes que não compreendo que quando eles desenvolvem no local, um empreendimento como a via expressa sul, que demandou um monte de trabalho e um monte de dinheiro: seria uma gota d’água no oceano resolver o problema daquela área, resolver o problema daquelas famílias. Adquirir através de desapropriação uma área e colocar de forma decente aquelas famílias. Não fizeram. Os órgãos ambientais também dizem, “isso não é conosco”. Esse é um problema também, uma dificuldade. Está na nossa legislação ambiental, bem claro, que tem que fazer estudos sócio-econômicos, e propor medidas mitigatórias e compensatórias também nessa área. Só que os órgãos ambientais sequer têm pessoal nessa área. Eles não tem sociólogo, não tem antropólogo, eles simplesmente não avaliam isso. Ou não exigem, ou vêem a documentação e sequer avaliam. E se limitam a compensações ambientais, quando a gente sabe que a retirada de uma população que está em cima de uma área de preservação permanente, é a melhor compensação que esse recurso natural pode ter. Qual a melhor compensação ambiental e social para aquele manguezal da Costeira do Pirajubaé, do que retirar aquela população de lá? Dar uma moradia decente para aquela gente que está em cima daquela água, contaminando e sendo contamiado, né? Mas infelizmente na última reunião que eu participei na Procuradoria do Estado para tentar resolver isso aí, eles ofereceram um terreno na Palhoça. Aí eu digo, bom, então vou tomar cafezinho e vou embora. Porque estamos cansados de falar que a população vive de pesca e extrativismo, tem pessoas que vivem de pequenos empregos na região, e evidentemente não podemos jogar essas pessoas lá na Palhoça. Tem que ser aqui. Por que que não se resolve na região? A Prefeitura pode desapropriar para tanta coisa, por que não pode desapropriar para este tipo de trabalho?

9 comentários:

Bion disse...

Prezado Cesar;
Muito bom o seu post!
Se vc tiver acesso a revista que bem encartada no jornal O Globo, leia o artigo da página 8 com Pedro Henrique Moura Costa sobre crédito de carbono!

Anônimo disse...

Se perguntarem para qualquer cidadão florianopolitano se ele concorda com a Dra Analúcia, ele dirá que sim. Mas na hora do "vamos ver" todos tentam puxar a brasa para o próprio churrasco. Isso é uma cultura que vem dos açorianos e foi aguçada recentemente (20~30 anos) com os gaúchos, no norte da ilha, e agora se espalhou como um câncer. Sinceramente, agradeço e muito, de coração, os esforços da Dra, mas não tenho esperanças. Talvez a salvação viria pela educação, mas também acho que não temos tempo, pois é outra área que o governo não dá prioridade. Nosso destino é certo: Seremos uma São Paulo, mas com água por todos os lados...

Anônimo disse...

Brilhante a entrevista e indiscutíveis as posições da Procuradora Federal.
Mas não dá para fugir da realidade de que a população do Brasil cresce de forma assustadora: éramos "90 milhões em ação" em 1970 e hoje já ultrapassamos dos 190 milhões de humanos que precisam de um lugar para morar !
Agravado pelo processo de urbanização da população (em 1970 44% moravam no interior e hoje apenas 20% continuam lá), essa combinação resulta na explosão das cidades, inclusive de Florianópolis, que também dobrou a população nesse período.
Somos sim uma Ilha, mas é preciso então concientizar as pessoas para que não façam filhos nesta Ilha e não sobrevivam tanto tempo, além de fazer com que os que não são daqui, como a Dra. Analúcia, escolham outro recanto para morar.
Caso contrário, vamos virar sim uma São Paulo, ou um Rio de Janeiro, uma Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Goiânia ou outra qualquer cidade brasileira.
Temos que encontrar a fórmula para evitar o caos que já está proximo, e não temos dúvida que qualquer um, como a Dra. Analúcia, vai querer colaborar, desde que não seja prejudicado !

Anônimo disse...

Ana "Lúcida",
a comunidade de Et's em Santa Catarina parabeniza sua força!
Aquilo que dizía-mos a vinte anos atrás, repetimos como papagaios para uma platéia que só consegue enxergar um tipo de verde: o da moeda norte americana! "Depois da última árvore derrubada, do último rio poluído" nossa comunidade desenvolvimentista irá perceber que "dinheiro não se come"! Ana "Lúcida", ajuda-nos á deixar uma herança melhor aos nocssos filhos, bem diferente daquela que recebemos! PARABÉNS!

Anônimo disse...

Me parece que a procuradora tem razão na maioria das coisas que diz, porém não consigo entender algumas posições tomadas ao longo do tempo, que impedem por exemplo, a construção de uma, ou várias, marinas na orla de Florianópolis.
Não é possível que não exista lugar adequado para que se construa uma marina na cidade (ou na beira-mar).
Agora, sou totalmente favorável a um plano diretor responsável que limite a expanção da cidade, que realmente já não suporta mais ninguém.

Anônimo disse...

Sabe, tio César, gostei muito da entrevista com a dra. Analúcia. Sempre admirei muito o trabalho dela. Mulher forte, guerreira. Mas qual não foi minha surpresa ao ver essas fotos, e me deparar como mulher tão linda.
Não me leve a mal não, dra. Analúcia. É um elogio hiper-sincero. Parabéns por sua atuação profissional. Se tivéssemos mais umas 5 como a sra, esse estado não teria tanta podridão (aliás, tá aumentando a cada dia...)

Anônimo disse...

Belka entrevista com a procuradora Ana Lucia, a mulher mais temida pelos empreendedores de Floripa. Só uma consideração: pela foro publicado, percebe que ela deve ser "procuradora" mesmo, porque para se encontrar no meio daquela bagunça deve "procurar" muito. Parabéns ao Diarinho, cada vez melhor.

Velho Mamute disse...

Bela entrevista que reforça pontos conhecidos do MPF e ratificam o vigoroso trabalho da Dra. Ana Lúcia. Apenas um porém: restinga NÃO É A VEGETAÇÃO rasteira que recobre porção de areia, próxima ou não do mar, mas sim, termo técnico de classificação de formação arenosa, portanto, pertencente à geologia. Segundo: o mar não leva areia, ao contrário traz. O fenômeno de avanço das águas em algumas praias tem explicações científicas que diferem das apresentadas. Inobstante isso, PARABÉNS especialmente ao trabalho da diligente Procuradora, com os respeitos de quem comunga 90% com a posição defendida.

Anônimo disse...

Tio Cesar,
esse mamute aí "enrriba" é velho mesmo. Restinga em termos ambientais deixou de ser àquele arcaico conceito dos livros de geologia. Não deixa de ser um acidente geográfico, como querem muitos "ambientalistas empreendedores", mas o conceito moderno e "ambientalmente sutentável" está claramente descrito na Resolução do CONAMA Nº 261, DE 30 DE JUNHO DE 1999(Publicada no D.O.U. Nº 1.108/99) feitinha só prá Santa Catarina assim: "Entende-se por restinga um conjunto de ecossistemas que compreende comunidades vegetais florísticas e fisionomicamente distintas, situadas em terrenos predominantemente arenosos, de origens marinha, fluvial, lagunar, eólica ou combinações destas, de idade quaternária, em geral com solos pouco desenvolvidos. Estas comunidades vegetais formam um complexo vegetacional edáfico e pioneiro, que depende mais da natureza do solo que do clima, encontrando-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões associadas, planícies e terraços." Espia lá: http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=260.
Lugar de mamute é a tundra gelada. Xô da restinga!