Todo ano, com algumas variações, renasce uma velha pendenga* na Ilha de Santa Catarina. Filhas legítimas da nossa vocação para aldeia açoriana isolada, quieta, parada no tempo, Florianópolis e as demais povoações da ilha** sofrem com o assédio dos estrangeiros. Quem chega admira-se com as belezas naturais e quer ficar, quer voltar sempre e a fama corre mundo. E a aldeia açoriana que vive em cada um dos habitantes nascidos aqui sente-se mal com a notoriedade, desconfortável por não conhecer, pelo nome, cada uma das pessoas que encontra na rua.
Tornar-se um destino turístico de grande procura e fácil acesso é a pior coisa que pode acontecer para uma aldeia açoriana. O futuro, que não está longe, vai mostrar que a aldeia acabou, que os estrangeiros venceram e que os nativos, tal qual os indígenas, foram escorraçados para guetos, onde definham até liberar a área, completamente, para a instalação da grande colônia temática de férias em que a Ilha de Santa Catarina tem se transformado a cada verão.
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Outro problema sério, que amplia as aflições açorianas e as lamentações a que o sangue luso nos obriga, é a quantidade de turistas que ficam por aqui mesmo. Compram um terreninho, ou dois, ou dez (como os argentinos, há mais de dez anos), instalam seus consultórios, lojas, escritórios (como gaúchos e paulistas). E vão atraindo conterrâneos e compatriotas.
Os descendentes de italianos, alemães, austríacos, poloneses, japoneses e outras tantas nacionalidades, que vivem no interior do estado, quando vêm à Capital estudar, também não voltam mais. Até os deputados estaduais compram apartamentos, instalam suas famílias e residem aqui durante e depois dos mandatos. E vão às bases apenas de visita.
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Com a grande invasão de jornalistas gaúchos de 1972 (chamados pelos donos de jornais para conduzir a modernização da imprensa catarinense***), o mané aqui passou a ser minoria em mesa de bar de jornalistas. Com outras profissões e atividades essa inversão deu-se mais tarde, décadas depois. Mas duvido que hoje exista algum grupo, na mesa de qualquer bar, composto apenas de nativos.
E estas observações não são xenófobas. São apenas a expressão verbal daquele conflito que nos vai n’alma: a aldeia açoriana, quase um claustro, e a vida mundana, cosmopolita. Ao mesmo tempo em que reclamamos quando algum jornal em algum país fala mal de Florianópolis ou de algum de seus filhos, reclamamos porque jornais de vários países falam sobre Florianópolis e seus filhos. A gente não gosta de propaganda, mas a gente odeia ser desconhecido. A gente não conseguia pronunciar direito “Florianópolis”, chamava de fpólis ou de floranóplis. Mas odiou quando algum gaúcho ou paulista simplificou para “Floripa”, palavra até hoje usada muito mais pelos estrangeiros do que pelos locais.
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A gente quer ser famoso, mas não quer receber visitas. A gente quer que todos achem que esta é a verdadeira cidade maravilhosa do mundo, mas a gente não quer que o movimento de turistas atrapalhe a nossa rotina ou apresse nosso passo. A gente não admite preparar a cidade para quando tiver um milhão de habitantes ou mais, porque acha que é melhor explodir as pontes, expulsar os estrangeiros e manter o número de habitantes para o qual a cidade está preparada, que não deve ser superior a 50 mil.
Mas a gente gosta de ser moderno, de ter as facilidades das grandes cidades e quer a todo momento sentar-se à frente da casa, na calçada, para tomar a fresca da tarde ou da noite, cumprimentando pelo nome – e a seguir falando mal dela e de toda a família – todas as pessoas que passam.
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O fim dessa história já está escrito e eu não vou estragar o suspense contando-o a quem ainda não sabe ou nem imagina. Não é um final feliz, mas também não será o fim do mundo. Também pode ser que eu, como mané legítimo, neto do Luiz Gonzaga Valente, que tinha as odiadas lanchinhas que faziam a travessia ilha-continente antes da construção da ponte, esteja exagerando no pessimismo.
Os usuários das lanchas do seu Valente achavam aquilo um atraso e queriam uma ponte. Logo depois de construída a ponte, começaram a ver que as mudanças que ela traria iriam acabar nessa Florianópolis de hoje, irreconhecível como aldeia açoriana. E todo ano alguém fala em dinamitar as pontes (hoje são três). E fechar o aeroporto. E exigir controle alfandegário para as lanchas que chegarem do continente.
Ao mesmo tempo, quase no mesmo parágrafo, falam em ampliar o aeroporto, construir mais uma ponte para desafogar o trânsito e enviar missões ao exterior para divulgar a maravilha que é fazer turismo na ilha de Santa Catarina. No dia seguinte tudo recomeça.
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No meu carro, que tem placa de São Paulo, tive que colocar um aviso, bem grande: “Sou mané, só meu carro é que não é”. Porque já estava cansado de ouvir, pelas ruas da cidade, “volta pra tua terra!”, sempre que ultrapassava alguém ou ficava na frente de alguém ou ao lado de alguém ou reduzia a marcha para estacionar (situações inevitáveis, quando se está trafegando em via pública).
Assim que saio do carro, contudo, sou tratado com grande cortesia e respeito, porque, afinal, um paulista é um paulista e eles têm dinheiro e ainda bem que eles estão vindo pra cá e não para o nordeste e todas essas coisas. Quando digo que sou daqui mesmo, a gentileza assume uma face bem mais indiferente e fria: “se qués, qués, se não qués, diz” (caso o leitor ou a leitora não conheça o sotaqe ilhéu, deve substituir os esses e zês finais por um xis, parecido com o que os cariocas usam).
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A minha aldeia açoriana, onde ainda encontro paz e sossego, só existe no passado. Vou lá de vez em quando para descansar. E é uma maravilha, porque não existem ainda pontes que levem ônibus e aviões de turistas ao passado. Muito raramente aparece um ou outro caixeiro viajante, um ou outro militar transferido, um ou outro estrangeiro, como o Zé Peri (Saint-Exupéry) piloto do aviãozinho do correio que faz escala ali no Campeche. Uma bela aldeia. Cercada pelo mar, onde a gente joga as fezes, as tripas dos peixes e toda a sujeira. Graças à proximidade do mar e de sua brisa, a aldeia é limpa e a temperatura, agradável.
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Notas:
* Velha pendenga não é, como pode parecer, uma senhora idosa com algum problema que a faça claudicar (ou mancar). Velha pendenga é uma discussão antiga. Só.
** O nome correto é Ilha de Santa Catarina. Florianópolis é só o município, cuja extensão inclui a ilha e uma área continental. Não existe Ilha de Florianópolis.
*** Naquele ano foi criado, em Blumenau, o Jornal de Santa Catarina, hoje pertencente ao grupo RBS e no ano seguinte o jornal O Estado, de Florianópolis, ganhou rotativa off-set, nova redação e novo projeto gráfico.
5 comentários:
Bela matéria, tio Cesar. Ao mesmo tempo sensível e realista. Já morei em Florianópolis, por cinco anos, no início da década de 70 do século passado. Ultimamente tenho ido pouco para aí, e culpo as más condições da BR-101 por isto. A verdade é que nas últimas vezes não tenho gostado do que vejo. Além disso, as placas do meu carro são de Porto Alegre. Forte abraço.
Só resta ao nativo cantar: "a gente somos inúteis..."
Esse tipo de texto talvez ainda será atual por mais uma década. Depois disso, ninguém mais entenderá o que você escreve...
É só pra lembrar que muitos leitores passam por aqui usando a sala secreta dentro dos programas agregadores de feeds. É o meu caso.
Hoje acho que muitos blogs não podem ter mais a popularidade medida pelas visitas na home. Confesso que fiquei espantada com os números que vi no Google Reader ou no Bloglines.Caíram alguns mitos e outros se revelaram potências.
Eu gostei muito do tempo que morei em Floripa e pude dividir minha falta de talento ao volante com outros tantos barbeiros nativos.
Não resisto as tuas chantagens emocionais. Tive que passar no Carta Aberta e me deu saudade do ano de 2003.
Sabe que estou gostando do tal de Twitter. Mesmo parecendo que falo com as paredes e aproveito pra destilar bobagens, eu me sinto religada a muitos amigos dos blogs e de drops em drops me sinto de volta a casa virtual de cada um em rápidas visitas.
Beijo
César,
está excelente esta sua crônica. Meus cumprimentos sinceros.
abs
Aluízio Amorim
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