Eu sabia que essa sensação não me era estranha. Custei um pouco para localizar exatamente, mas finalmente achei. Era década de 70. Eu estava começando a publicar o que escrevia e desenhava. O Brasil era uma ilha de paz e tranqüilidade num mundo corrompido por ideologias exóticas. Mas aqui na ilha dentro da ilha a gente sabia de tudo o que era pra gente não saber. As gavetas estavam cheias dos bilhetinhos aqueles “de ordem superior fica expressamente proibida qualquer menção sobre a visita que D. Helder Câmara fez à sua (dele) tia”. As conversas de corredor, falando baixinho, contavam dos mortos e mutilados. As receitas de bolo nos ensinavam os versos de Camões.

Não tenho mais idade para render-me a essas sensações de medo, de receio de ser considerado alienado (alienado é bem daquela época). Tanto tempo de vida tem que ter-me ensinado alguma coisa. Não será mais uma cara feia, mais um semblante (semblante? de onde tirei isso?) carregado, mais alguns parágrafos hirsutos (credo!) e novas reflexões azedas que irão resolver os problemas do mundo.
Mas, quem sabe, uma boa história bem contada, uma música alegre, piadas irresponsáveis ao redor de copos de chope que balançam e quase caem com as gargalhadas, ah, o bom humor, quem sabe isso também não ajude? O alegre encontro de amigos antigos, rindo-se um do outro (que cabelo é esse, quem cortou? foi o pombo? sim, porque merda na cabeça quem faz é pombo), piadas sem graça que naquele momento ganham risadas e produzem substâncias químicas e movimentam as glândulas todas e exercitam os músculos da face, dão mau jeito nas costas ao abaixar-se para pegar os óculos que a risada derrubou. E vão os dois, rindo-se, atrás de um quiroprático (quem? o Mário. Que Mário?).
Há algum tempo comecei a achar que a gente vence os problemas e os problemas criados pelos de-mal-com-a-vida atirando a nossa alegria na cara dos outros, mostrando que nada que eles façam pode nos derrubar. E chegei a falar isso, em público, uma vez. Não deu muito certo e tive que fazer alguns ajustes, mas acho que, no fundo, é isso mesmo.
Não, não vou contar, fiquei com muita vergonha. Tá pensando que eu vou me expor assim? Tá bom, eu conto. No ano passado, na greve da Gazeta Mercantil, em São Paulo, chegou o momento de voltar para a redação. Alguém levantou, na Assembléia, a questão de como deveríamos nos comportar, porque os fura-greve poderiam fazer provocações. O bem humorado aqui, este alegre bobo que vos fala levantou-se e fez um discurso daqueles.
Sabe quando a gente fala o que tem vontade e depois que termina de falar descobre que deveria ter pensado melhor? Sabe quando a gente, depois que termina, fica com aquela sensação de que deveria ir imediatamente visitar aquela tia distante, bem distante, no Acre, por exemplo? Pois é: falei que a gente deveria ignorar os fura-greve, “esmagá-los com a nossa alegria” (sic) porque fizemos um movimento bonito, agimos decentemente, etc e tal. Como se diz modernamente, “oh my God!”

De lá pra cá fiz alguns ajustes nos procedimentos, mas continuo achando, por incrível que pareça, que não devemos deixar de falar, escrever, desenhar, pintar e bordar bobagens só porque estamos cobertos de trevas (agora não é a ditadura aquela, mas é a falta de dinheiro, a falta de emprego, a falta de ânimo, a falta de respeito pela cultura e pela liberdade). Utópico como todos os palhaços, gosto de imaginar que destas brincadeiras todas (eu perco o amigo mas não perco a piada, não tem?) pode nascer alguma fagulha que ajude a transformar esse breu, uma luz tímida que se junte a outras e nos ilumine um pouco mais.
É claro que, hábil como sou para enrascar-me, acenderei a tal centelha, o pequeno lume, numa sala cheia de explosivos, tal e qual nos desenhos animados, e enquanto estiver indo pelos ares, despedaçado, provavelmente pensarei (num dos 300 pedaços dispersos do meu cérebro voador alguns neurônios ainda funcionavam), “bem que eu podia ter ficado calado, pelo menos desta vez”.
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