segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

SEGUNDA

[“Ninguém deveria poder impedir que um jornalista se expresse”: cartaz da campanha dos Repórteres Sem Fronteiras pela liberdade de imprensa.]

Peço licença aos leitores para ocupar este espaço
com algumas reflexões que talvez interessem mais aos jornalistas do que ao público em geral, mas que são importantes para que a gente tente compreender melhor um episódio que ocorreu semana passada e que envolve o direito à informação, a liberdade de imprensa e os direitos humanos.

COMO TUDO COMEÇOU
Na quinta-feira, o Cláudio Silva, do DC, estava no centro, fotografando a manifestação do pessoal do passe-livre e seus desdobramentos, como o confronto com a polícia. Quando prenderam um dos líderes da manifestação, um sargento disse que o Claudinho não podia fotografar.

Ora, nenhum fotógrafo profissional que se preze e que honre as calças que veste, vai aceitar que alguém lhe diga o que pode e o que não pode fotografar em um lugar público.

Decerto o sargento achou que o fotógrafo trabalhava no DIARINHO, porque o chamou de “negro viado”, numa evidente provocação. E em seguida deu voz de prisão e botou o Sarará num camburão. A viadagem aqui da casa ficou de cabelo em pé com a expressão preconceituosa do policial.

É preciso, agora, indagar do governador LHS e do secretário Benedet, qual dos dois deu a ordem para impedir que a ação policial fosse fotografada. Porque se o sargento agiu por sua livre e espontânea vontade, precisa ser imediatamente punido.

Num Estado de Direito não pode o policial (e sequer o oficial ou mesmo os agentes políticos) regulamentar a seu gosto a Constituição.

Os policiais usaram a força para impedir o Sarará de trabalhar e, como complemento da ação ilegal, espancaram o rapaz com uma crueldade que parece habitual. Durante todo o trajeto até a Central de Polícia o “corajoso” sargento que o impediu de fotografar aproveitou que o Sarará estava algemado e esmurrou seu rosto, deixando marcas visíveis.

FATOS IGNORADOS
Só depois que foram cometidas várias arbitrariedades (a começar pela censura policial ao registro de um evento de interesse público) e que o fotógrafo tinha sido espancado, é que se começou a pensar numa forma de transformar a vítima em réu.

Sarará conta que foi obrigado, na marra, a soprar no bafômetro. Mais uma violência descabida. Mas o jornal Diário Catarinense, ao redigir a notícia, fez uma estranha seleção dos fatos que deveria e que não deveria levar ao conhecimento de seus leitores. E escolheu publicar, certamente após acaloradas discussões internas, apenas que seu empregado, segundo a polícia, estava bêbado.

Não fala sobre o espancamento, não diz nada sobre a proibição de fotografar, não se refere ao outro fotógrafo da casa que teve equipamento danificado pela polícia. A omissão desses fatos dá ao “teste” a que o Sarará foi submetido em condições desumanas e humilhantes, uma dimensão falsa.

O resultado do bafômetro, por falar nisso, não foi mostrado na hora ao Cláudio. Ele sequer sabe qual o teor que acusou. Não deve ser muito alto, porque ele tomou uma cerveja no começo da tarde, no Mercado. Mas esse “teste” está sendo mais valorizado que as fotos que mostram seu rosto machucado.

E a notícia, do jeito que foi publicada no jornal, deixa mal o Nelson Sirotsky (diretor-presidente da RBS), que, como presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), tem se posicionado contra ações arbitrárias que visam impedir ou dificultar o trabalho da imprensa. E foi isso que a polícia fez: impediu, com violência, o DC de cumprir sua missão, ao deter e espancar um de seus funcionários.

ESPANCAMENTO COVARDE
O Cláudio não foi preso porque estava bêbado. Foi preso porque ousou fotografar a ação da polícia.

E mesmo que fosse crime – e não é – fotografar policiais, a pena para isso não seria o espancamento. E o Sarará foi covardemente espancado.

Depois a polícia começou a afirmar que ele tinha tomado umas cervejas. Mesmo que fosse crime – e não é – tomar umas cervejas, a pena para isso não seria o espancamento. E o Sarará foi covardemente espancado.

DECISÃO PRECIPITADA
Por mais que a gente tente compreender a posição da RBS e da direção do Diário Catarinense no caso do seu fotógrafo Cláudio Silva (demitido menos de 24 horas depois do incidente em que foi impedido de trabalhar, preso e torturado), sempre esbarra em algum aspecto difícil de aceitar.

Aparentemente a empresa, ou algum de seus dirigentes, ficou tão assustada com o resultado do teste do bafômetro, que não pensou em mais nada que não fosse livrar-se do “mau elemento”. Sequer pensou que a ação policial visava, em primeiro lugar, o próprio jornal.

A gestão do pessoal e das crises que envolvem empregados são disciplinas básicas na administração de qualquer empresa. Na maioria das grandes empresas existem profissionais que se prepararam para lidar com essas situações de forma a não ampliar os problemas nem prolongar desnecessariamente as crises.

Não duvido que a própria RBS tenha, em seus quadros, gente com essa formação. Só que, neste caso específico, a parte visível da ação da empresa demonstra que alguns de seus gestores foram movidos por um ansioso amadorismo que os levou a cometer erro em cima de erro. Provavelmente alguém não preparado avaliou mal a gravidade da crise e achou que poderia lidar sozinho, sem pedir ajuda ou se aconselhar. E agora a empresa se encontra no meio de uma crise mais grave que a inicial.

TRASTE DESCARTÁVEL
O que o Diário Catarinense fez não foi demitir um mau profissional que exagerou na bebida e deu vexame ou descumpriu suas obrigações profissionais. Eles demitiram um profissional que foi espancado pela polícia justamente porque tentava cumprir o seu dever. E o jornal aceitou, aparentemente sem qualquer tipo de questionamento, a primeira explicação da polícia. Ao que tudo indica não levou em conta as circunstâncias e nem considerou que, mesmo que ele tivesse um pouco (ou muito) álcool no sangue, a ação policial foi ilegal e não podia ser ignorada.

E aí, no meio de um episódio obscuro de violência policial, de onde o Sarará emerge com sinais claros de espancamento, a empresa abandona seu empregado e os princípios que diz defender e agarra-se ao “diagnóstico” apresentado pelos autores da violência.

Além de não deixarem o Sarará fotografar, além de o terem torturado, os policiais ainda conseguiram demití-lo com enorme facilidade. A polícia atuou com grande desenvoltura e o jornal apequenou-se diante do arbítrio.

“VOU ALI NA KOMBI”

Em todas as redações onde trabalhei, em Porto Alegre, São Paulo, Brasília e aqui, sempre tinha um boteco, uma birosca, um botequim por perto, onde o pessoal se “abastecia”. Os diretores, é claro, freqüentam restaurantes mais chiques, bares refinados ou têm seu uisquezinho no armário da sala.

Na Gazeta Mercantil, no final do século passado e início deste, na sede de Santo Amaro, em São Paulo, tinha uma kombi que estacionava diante do jornal, do outro lado da rua, onde o pessoal mais aflito ia calibrar o fígado.

Lá de cima (o jornal ocupava um prédio de dez andares e a redação do jornal era no terceiro), editores e diretores viam o movimento e sabiam quem eram os freqüentadores.

Ou seja: nenhum chefe de redação pode se surpreender com o fato de jornalistas sob sua responsabilidade tomarem, vez por outra, uma cerveja ou alguma coisa mais forte. No jornalismo, como tantas outras profissões com grande carga de estresse, o álcool é um problema mais ou menos generalizado.

Faz parte da função dos chefes, nas redações (como nas demais organizações) lidar com este e com outros problemas sem hipocrisia. E sem fingir que foi supreendido com a informação: “o quê? funcionário meu com álcool no sangue? que absurdo!”

E AGORA?
O problema de decisões precipitadas (e portanto pouco refletidas) como a demissão do Sarará é a mensagem de estímulo que ela passa para os maus policiais: “fica frio, sempre que um jornalista te incomodar, dá voz de prisão, enche ele de porrada, quebra o equipamento e depois é só dizer que ele te agrediu que o cara acaba no olho da rua e sem ter quem o defenda”.

O papel dos oficiais envolvidos no episódio e mesmo de outros agentes do governo precisa ser esclarecido não para que o Sarará recupere seu emprego, mas para que nós todos não fiquemos, cada vez mais, à mercê de gente truculenta que nada no mar azul da impunidade.

Esse sargento racista, que em vez de manter a ordem criou um tumulto à parte, deve estar se sentindo muito poderoso. E com razão. Fez o que fez e ainda conseguiu apoio e acobertamento. E a vítima virou réu.

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Links relacionados ao tema
(na versão impressa da coluna estes endereços não aparecem por falta de espaço)

Rede em defesa da liberdade de imprensa, criada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), na gestão Nelson Sirotsky, em parceria com a Unesco.

Relatório anual sobre liberdade de imprensa no Brasil, publicado pela ANJ (em pdf).

Repórteres Sem Fronteiras, ONG que reúne e divulga casos de violência contra jornalistas no mundo.

17 comentários:

Anônimo disse...

Caro,
Excelente relato.
Como protesto cancelei minha assinatura.

Anônimo disse...

Palhaçada revoltante!

Anônimo disse...

Não foi o César Valente que fechou o bar do Jornal O Estado, lá na década de 80, porque a rapaziada tava saindo um pouco da linha??? Eu estava lá. Eu vi. Álcool e drogas fazem parte da vida corrida dos jornalistas. Ou não???

Anônimo disse...

Perfeitas as suas colocações, menos uma, logo no início: esse assunto não interessa apenas ou "mais" a jornalistas, mas a todos aqueles que ainda têm a capacidade da indignação ética. E a RBS não pode ser havida como um exemplo de correição em relação aos seus subordinados. Um abraço.

Anônimo disse...

Eu quis dizer "correção", embora seja a mesma coisa. Mas o hábito...

Anônimo disse...

AINDA DA TEMPO DE A DIREÇAO DO DC REVER A SITUAÇAO DO COLEGA SARARA,E INCRIVEL QUE UMA PESSOA QUE TEM TANTOS ANOS DE EMPRESA E VARIOS PREMIOS PELO SEU TALENTO E AJUDADO A DIVULGAR BEM A IMAGEM DESTE PERIODICO,SEJA ELE JOGADO NO LIXO DA NOITE PARA O DIA LITERALMENTE, GENTE PENSEM BEM NO EQUIVOCO QUE ESTAO FAZENDO DEFENDENDO UMA ARBITRARIEDADE DO PODER PUBLICO.
DOU UMA SUGESTAO AO SINDICATO FAÇAM UM ABAIXO ASSINADO CIRCULANDO EM TODAS AS REDAÇOES DEFENDENDO A VOLTA DO SARARA A REDAÇAO DO DC E O PRESIDENTE DO SINDICATO ENTREGUE AOS SIROSKIS EM MAOS.
- SARARA, ESTOU COM TIGO, UM ABRAÇO!

Anônimo disse...

Uma coluna brilhante e que dá gosto de ler. Espero que seja anexada aos autos do processo dele contra a empresa e que o resultado final seja uma indenização vultosa, sem falar na condenação dos torturadores e arbitrários. Abraço, D/

Anônimo disse...

Cesar , tenho denunciado por vários meios a máfia dos transportes de Floripa. É repressão desde 2004.
Este episódio mostra a criminalização do movimento social.
Seguranças privados a mando do Estado e polícia violenta agindo na repressão, contra o povo e a imprensa.
Tudo acobertado ´pelos governantes de plantão.
Temos que ir a fundo e punir essa canalhada.
Brilhante texto, todo apoio ao Sarará!

Anônimo disse...

César, muito bom. Fico tão indignado que pouco consigo falar. Mas tento:
1. Ou o secretário de (in)segurança pune claramente os polici(anim)ais, ou pede demissão imediatamente. Se não o fizer, deve ser exonerado sumariamente.
2. Não sabia que o Sarará tinha sido demitido. Será que não há uma viva alma inteligente naquela empresa capaz de não piorar uma situação que já era complicada? (Isso pra dizer o menos).

Anônimo disse...

Mestre César, perfeito o texto. Soube primeiro da prisão, na lista da Abraji. Quando liguei para colegas do DC, é que fiquei sabendo da extensão da história. Caramba, e essa é a maior empresa de comunicação do Sul do país. Ficaram totalmente curvados à primeira versão dada pelos agentes do governo. Vergonhoso.

Anônimo disse...

Quem conhece a história da RBS em Santa Catarina sabe que história do Sarará não é a primeira e nem será a última. Alguém lembra das histórias do Renan, Celso e outros que foram perseguidos e demitidos? bjs seu César

Anônimo disse...

Este texto tem que circular bastante para mostrar ao Brasil (e ao mundo) a realidade da imprensa catarinense. Um absurdo que precisa ser desmascarado, sob pena de sermos eternos reféns. Sugiro que o sindicato, ONGS e alguns políticos locais façam suas manifestações nas rádios, se posicionem, divulguem seus comentários e não tratem apenas como uma questão pessoal. O lado pessoal é importante, mas a solução é ética, é política. Porque será que em Porto Alegre essas coisas não acontecem tanto? Pressão, pressão e pressão... vigilância do chamado quarto poder.

Anônimo disse...

Uma correção: No texto acima, quero dizer "parte da imprensa catarinense", pois ainda há muita gente e jornais que buscam se pautar pela ética. Espero ter corrigido em tempo de algum mal entendido.

Anônimo disse...

Grande César Valente... Depois de ler seu (brilhante) relato só há uma coisa a dizer: o caso é vergonhoso! É uma pena que a imprensa seja tão subserviente, enquanto que o papel dela deveria ser justamente o oposto: questionador e revelador.

Anônimo disse...

Quinta-feira, dia 23 de fev, haverá uma manifestação do Bloco da Caixa-Preta dos Transportes às 17 hs em frente ao Terminal Rodoviário do Centro de Florianópolis.

Creio que todos nós deveríamos participar e fazer um carnaval contra estes canalhocratas. Sejam do Estado ou do 4o. poder.

Festejem pelo direito de lutar, lutem pelo direito de festejar.

Anônimo disse...

Também gostei do seu relato dessa história tão revoltante. Não vi absolutamente nada do que foi narrado mas a revolta que bate é de como seu estivesse lá.
Seu único engano é talvez acreditar que esse relato interesse mais aos jornalistas. Ou talvez você tenha razão, e deve ter. E passa a ser vergonhoso o fato de poucos se interessam e buscarem essas informações.
Pior é que a vontade é de ficar muito bêbada e agredir um policial desses. De curá-lo com seu 'remédio'. Mas isso não passa de uma vontade insana pois racionalmente e na prática não o desejo.
Então me perguntei o que eu poderia fazer.
Ainda não sei mas, para começar qualquer conversa precisaríamos do nome do sargento.
Temos o nome dele? Como descobrir?
Abraço.

Anônimo disse...

Vexaminosa a atitude desse jornaleco. Claramente houve um acordo para que a versão do jornal justificasse os atos dos policiais. Mais um exemplo do desserviço que a grande imprensa presta neste país, imprensa essa que, em descompromisso com o leitor, omite dele a realidade dos fatos e ainda pune com demissão os profissionais da casa que prestam seu papel com seriedade. É um caso de auto censura grave que tem que ser divulgado para todos. Ainda bem que hoje em dia a informação de qualidade chega às nossas mãos democraticamente através de sites como esse. Parabéns pelo texto!